CHUTADA PARA ESCANTEIO

Eliza Samudio é uma Geni insepulta. Provavelmente está morta. Mas continua apanhando! Agora a discussão é se caberia ou não a aplicação da Lei Maria da Penha em seu favor.

Respondo: cabia sim!

Não importa se a moça paranaense era uma “maria chuteira”, uma ”garota de programa”, uma “dadeira” ou, como se diz aqui na Bahia, uma “piriguete”. Eliza foi vítima de violência de gênero, exatamente a prática que a Lei Maria da Penha (LMP) visa a coibir.

O art. 5º, inciso III, da Lei 11.340/06, determina que ”Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”

Para aplicar esse dispositivo, é preciso ter em mira o art. 4º da LMP, segundo o qual “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina [...]“. Sua finalidade precípua é justamente a proteção das mulheres vítimas da violência de gênero, intrafamiliar ou não. E, por se tratar de estatuto voltado à tutela de direitos fundamentais de pessoas vulneráveis, deve prevalecer na sua execução a regra da máxima efetividade.

Assim, evidentemente, não é necessário que haja ou tenha havido qualquer espécie de coabitação entre o agressor e a vítima. Basta que tenha havido violência de gênero decorrente de uma relação íntima de afeto, em prejuízo de uma pessoa juridicamente vulnerável. No caso concreto, a situação de vulnerabilidade parece ainda mais evidente na medida em que a vítima estava gestante quando levou o fato ao conhecimento das autoridades fluminenses.

Se o legislador não exige a coabitação para a aplicação da LMP (“independentemente de coabitação“), não se pode entender a expressão “conviva ou tenha convivido” como indicativo de que a mesma lei exigiria que os envolvidos mantivessem uma relação prévia sob o mesmo teto. Seria contraditório. Portanto, a ideia de convivência no art. 5º, III, da LMP se refere a qualquer relação afetiva entre o agressor e a vítima.

Os profissionais do Direito, especialmente juízes, membros do Ministério Público e delegados de Polícia, não podem esquecer que a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”, OEA, 1994) foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por força do Decreto n. 1973/96 e tem, no mínimo, valor de lei federal ordinária. Sendo um tratado de direitos humanos, essa Convenção Interamericana pode ser considerada um diploma supralegal, com status semelhante ao que o STF concedeu ao Pacto de São José da Costa Rica.

Conforme o art. 2º da Convenção de Belém do Pará, ”Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual“.

Esta regra muito clara dá o exato alcance do art. 5º, inciso III, da Lei Maria da Penha: qualquer relação interpessoal em que se verifique violência de gênero dá ensejo à aplicação de medidas protetivas à mulher vítima.

Também não dá para esquecer que a Convenção de Belém do Pará e toda a legislação protetiva dela decorrente, especialmente a Lei Maria da Penha, têm como premissa a prevenção da violência de gênero. Isto fica bem claro no art. 7º, alínea ‘b’, do tratado:

“Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher“.

Minha opinião: o Estado brasileiro violou os direitos de Eliza Samudio. Essa moça foi chutada para escanteio. Agora não dá para chorar sobre o leite sangue derramado…

Por Vladimir Aras

http://blogdovladimir.wordpress.com/

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